Pela
primeira vez, desde o início da onda de protestos que tomou o país, sinto alguma
segurança para expor em público minhas impressões sobre o que vem
acontecendo. Só nos últimos dois ou três
dias as coisas começaram a se definir bem, sob o aspecto do significado
político. De qualquer forma, adianto que
não é uma posição definitiva; a velocidade com a qual os fatos vêm acontecendo,
o surgimento de novos elementos e a perplexidade com a qual venho observando este
movimento já me fizeram mudar de posicionamento diversas vezes nos últimos
dias. Penso que essa seja a única forma
saudável de construir uma posição: através dos debates e discussões, leitura e
observação atenta das diversas narrativas que se colocam, tanto por parte da
grande mídia quanto através das posições externadas nas redes sociais.
Posto
isso, passo a discutir alguns pontos que considero fundamentais para a
compreensão do atual momento histórico: os motivos que deram início aos
protestos, o jogo de ressignificação que vem se desenrolando, a captura da
pauta de reivindicações por setores conservadores da sociedade, o papel das
instituições políticas e por fim, o que penso sobre o futuro deste processo.
1.
O
começo de tudo
Dada a proporção que os protestos atingiram,
não se pode negar que havia uma demanda reprimida. Mesmo com os avanços sociais na história
recente do país - e não foi pouca coisa - havia uma insatisfação generalizada
na população, especialmente na classe média.
A não-novidade é que essa insatisfação é meio que natural: dificilmente
alguma sociedade não tem uma série de críticas a respeito de vários aspectos de
seu país: a educação sempre pode melhorar, crime é sempre um incômodo, a vida
nas grandes cidades naturalmente traz consigo uma série de problemas, políticos corruptos,
etc.
Quando falo de classe média, não estou me
referindo aos pobres recém-promovidos à tal da “classe C”, mas a classe média
tradicional, aquela que tem capacidade de bancar ensino e saúde privados, que
pode viajar uma vez por ano pro exterior, que janta fora...enfim, o pessoal
aspirante a rico.
Agora,
contra o que protestam essas pessoas todas?
As manifestações começaram com um objetivo muito claro: a redução das
tarifas de ônibus e metrô na cidade de São Paulo. Mas só os R$0,20? Em princípio, sim. O MPL (Movimento
Passe Livre) existe desde 2005, e em 2006 fizeram sua primeira manifestação
na cidade de São Paulo, quando Kassab (DEM) reajustou as tarifas de ônibus de
R$2,00 para R$2,30 (+15%). Voltaram às
ruas em 2010, quando o mesmo Kassab reajustou novamente a tarifa para R$2,70
(+14,81%) e novamente em 2011, quando atingimos o atual valor de R$3,00
(+11,11%). Em 2011, foram 10
manifestações que se estenderam de janeiro a abril, além de alguns atos na
frente da casa de Kassab, sendo que a maior delas reuniu 7 mil pessoas. Enfim, foram atos contínuos, promovidos por
um movimento social pequeno, praticamente uspiano, que no máximo se equivaliam
a outras manifestações de médio/grande porte na cidade de São Paulo.
O
reajuste proposto por Haddad neste ano, para R$3,20 é o menor da série (+6,67%),
o prefeito assumiu há cerca de seis meses, a cidade de São Paulo vive uma
situação de pleno emprego...o que mudou?
O que teria levado tanta gente às ruas dessa vez? Pode-se alegar que ao bater em R$3,20 o valor finalmente chegara a um valor inaceitável, ou que o acúmulo de aumentos em relação à inflação acumulada é que chegou no limite do que se pode conceber. Acho que não. Acho que há algum fator superveniente que provocou o inchaço do movimento, e passo a relatar, em ordem cronológica, como fui percebendo os fatos.
Bem,
as manifestações do MPL em 2013 vinham ocorrendo da forma esperada. Eu vi a pintura da maior faixa do movimento, com os
dizeres “Se a tarifa não baixar, São Paulo vai parar”. Essa faixa foi confeccionada no prédio da
Geografia e História da USP, onde há um grande vão livre e muito espaço para
produzir esse tipo de material. Era
dia de colóquio no laboratório, uma quarta-feira, e eu me lembro de ter achado
graça da “ameaça" de “parar a cidade”, já tinha visto aquilo antes. Enfim, conforme o previsto, o número de manifestantes variou de 2 a 6 mil nos três primeiros
protestos, dentro da faixa dos anos anteriores e sem despertar maior atenção da
mídia, exceto pelos atos de vandalismo que foram acontecendo. No terceiro protesto, dia 11 de
junho, a situação começou a mudar: houve muito vandalismo na Av. Paulista e a
reação da PM terminou com o saldo de 30 manifestantes e 8 policiais feridos. Surge a seguinte imagem:
No
dia seguinte, a Folha e o Estadão publicam editoriais contra o MPL, que a
Folha (leia
aqui) classifica como “um grupelho ciente
de sua condição marginal e sectária ”, cuja reivindicação
“de reverter o aumento da tarifa de ônibus e metrô de R$ 3
para R$ 3,20 --abaixo da inflação, é útil assinalar - não passa de pretexto, e
dos mais vis. São jovens predispostos à violência por uma ideologia
pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação
geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados. (...)
É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer
valer as restrições já existentes para protestos na avenida Paulista, em cujas
imediações estão sete grandes hospitais.”
O governador Geraldo Alckmin, direto de Paris, manda seu recado
para a PM, que “promete
ser mais dura contra protestos”.
É muito importante frisar que até este ponto toda a imprensa e a imensa maioria da
sociedade estava contra as manifestações – inclusive eu e muita gente
da esquerda. O tom parecia ser exagerado
para uma reivindicação tão banal, afinal, “eram
só 20 centavos, o aumento do Haddad veio bem abaixo da inflação, muito inferior
aos de Serra/Kassab...”
Bem, lá se vão os manifestantes para o quarto protesto, no dia 13
de junho, quinta-feira. Já se esperava
que ocorressem novos confrontos, mas o que se viu foi uma reação extremamente
desproporcional da PM. Dessa vez foram detidas
mais de 200 pessoas, muitas por portar vinagre, e foram feridos 105
manifestantes, 18 policiais e tcharãn...15 jornalistas. 7 da Folha, incluindo uma repórter que tomou
um tiro no olho e um fotógrafo, que também atingido no olho tinha, até a última
vez que verifiquei, poucas chances de recuperar a visão. Se o protesto gerou a imagem do PM acuado,
este gerou cenas igualmente marcantes, em uma quantidade incrível:
A PM “errou a mão”...mas tudo bem, havia sido autorizada a usar
da força para conter os protestos, pelo governador e também pela mídia. Os jornais certamente lamentariam o
ocorrido. Veio o editorial da Folha:
“A Polícia Militar do Estado de São Paulo protagonizou, na noite
de anteontem, um espetáculo de despreparo, truculência e falta de controle
ainda mais grave que o vandalismo e a violência dos manifestantes, que tinha
por missão coibir. Cabe à PM impor a ordem, e não contribuir para a desordem.
(...) O Movimento Passe Livre preconiza a paralisação de São Paulo em nome da
irreal reivindicação de tarifa zero para os transportes públicos (não eram vinte centavos, aquele pretexto?) (...) Nem mesmo o saldo de 13 PMs
feridos justifica o emprego de meios excessivos pela polícia. Tampouco foi
eficaz a ação da PM, afinal ela acabou contribuindo para paralisar a cidade,
mais até do que o próprio protesto.”
A Folha traiu a PM. Alckmin não haveria de fazer o mesmo, certo? Parceiro antigo, adepto de soltar seus cães
sobre manifestantes - lembram de Pinheirinho?? Não?? Lembrem. Bom, o governador se limitou a declarar que “temos
a melhor polícia do Brasil”.
Aqui termina a primeira parte do post. A partir deste momento, as coisas começam a
tomar outro rumo.
2.
Ó Pátria amada,
idolatrada, salve, salve!
Dia 17 de junho de 2013, segunda-feira. Fomos para a rua, muito mais pela indignação
de ver o direito de protestar sendo cerceado do que exatamente pelos vinte
centavos. O governo havia, através da
PM, proibido o uso da Avenida Paulista como palco dos protestos, com o pretexto
de não atrapalhar o trânsito, conforme pedira a Folha...a polícia acabou parando a via para
coibir a manifestação na base da porrada.
No facebook, todos contra a polícia, o alvo principal das críticas era
Alckmin, que acusava os atos de ser uma armação política para prejudicar seu
governo.
Me encontrei com alguns amigos no cruzamento da Rebouças com a Faria Lima. Alckmin anunciara que não
permitiria o uso de balas de borracha, apesar de achar que a PM agiu bem: “eventuais desvios de conduta serão
investigados e punidos”. O clima foi
de festa absoluta: conseguimos, a contragosto do governador, retomar as ruas da
cidade (ou teriam eles aberto passagem?) , chegamos à Paulista sob os aplausos dos que assistiam nos prédios...de vez em quando, aplaudiam as pessoas que sacudiam lençóis brancos e bandeiras brasileiras nas janelas e sacadas - fiquei pensando que devia ser mais legal estar lá em cima, sensação de estrela do rock. Pelo caminho, ouvia-se, principalmente, o “vem
pra rua vem, contra o aumento”, além de “que coincidência, não tem polícia, não
tem violência”. Havia algumas pessoas
com bandeiras, cartazes de diversos temas e o hino nacional foi cantado algumas
vezes. Alckmin e Haddad foram pouco
citados, ouvi apenas uma vez um “Ei, Dilma, vai tomar no cu”. Tudo normal, pensei...estava impressionado
com a quantidade de gente que, na minha cabeça, estava lá para protestar pelo
direito de protestar, direito conseguido a duras penas. Era uma celebração da democracia.
Pelo caminho, telefonei algumas vezes para a casa dos meus pais,
para acalmá-los e saber das notícias.
Soube da invasão da Alerj e da tomada da marquise do Congresso...fiquei
impressionado, não achava que fosse ver isso na vida “povo muito bundão”, pensava.
Tirei fotos, compartilhei algumas coisas no facebook e a reação
foi muito positiva...o grupo que curtiu era muito heterogêneo, segundo o seu espectro político. Muita gente
gostou daquilo, da esquerda à direita.
No dia seguinte, 18 de junho, começaram a aparecer coisas estranhas: a
imprensa estava toda a favor dos protestos, “verdadeira
festa da democracia”, apenas criticando os isolados atos de vandalismo,
pontuais e pouco representativos perto das massas que protestavam
pacificamente. O facebook estava
extremamente nacionalista, como está até agora...e já tinha gente com a pulga atrás da orelha,
porque haviam observado, já na grande passeata do dia anterior um princípio de
hostilização dos partidos e manifestantes identificados com a esquerda. O Gabriel foi o primeiro a colocar um
contraponto, e chegamos a participar de uma conversa no facebook, com o Franklin, a respeito deste
texto, na qual eu argumentava que entendia que a irritação das pessoas se
devia a não aceitação da liderança de partidos de esquerda, como PSTU, que
tinham suas bandeiras na frente da manifestação. A manifestação do dia 17 foi muito grande, de
forma que, dependendo de onde a pessoa estivesse, veria uma passeata diferente...de
qualquer forma,
Ainda no dia 18, houve uma reunião de Haddad com o conselho da
cidade e integrantes do MPL. No mesmo
dia, a tentativa de invasão da prefeitura.
A PM se fez ausente, deixando a Guarda Civil Metropolitana encurralada
dentro da prefeitura enquanto rasgava a barraca de um casal de sem-teto, só pra
não deixar cair muito o nível de perversão.
A impressão que tive foi justamente a de que Alckmin resolveu deixar a
bomba para Haddad: os protestos estavam mais direcionados contra a prefeitura, no
centro da cidade do que ao governo estadual, no distante bairro do Morumbi – em que pese a
tentativa de invasão no dia 17 (a sede do governo paulista fica dentro de um
parque, todo gradeado e mais fácil para dispersar multidões). Além de permitir a depredação da prefeitura,
a PM ainda “liberou” os saques no centro da cidade por duas horas. Há inúmeros registros de pessoas que viram
policiais a poucos metros de onde os vândalos arrombavam e roubavam lojas.
No dia 19 (esse será o último registro cronológico), Haddad e
Alckmin anunciam, em conjunto, a redução das tarifas. O MPL mantém a manifestação marcada para este
dia, agora, para celebrar a redução da tarifa.
Neste ponto, protestos já irromperam em várias cidades do país, com uma
pauta difusa e sem objetivos claros. Uma
multidão foi para as ruas, 110 mil somente em São Paulo. Neste dia li e ouvi, de amigos, vários relatos que davam conta
da hostilização dos partidos e movimentos sociais ligados à esquerda. O PT foi expulso da manifestação, outros
partidos foram hostilizados. Chegaram a
fazer um cordão de isolamento que em pouco tempo foi rompido pelos agressores,
que estavam espumando de ódio. Bandeiras
eram tomadas das mãos dos militantes, queimadas ou rasgadas, às vezes às
dentadas. Uma amiga relatou ter visto uma bandeira do PT, em chamas, ser atirada contra os militantes petistas. Os gritos de “sem partido”
dominavam. O clima era de selvageria
total – provocado justamente por aqueles que julgam que o povo não precisa de partido, afinal, somos civilizados e se cada um
agir por si podemos chegar a bons acordos e decisões. Tá.
Aí sim eu vi civilidade e respeito à pluralidade!
O MPL, missão cumprida, se retira do movimento. Sobra uma imensa massa, brava com muita coisa, despolitizada, além de um contingente de nacionalistas, moralistas, com seus
discursos anti-corrupção, contra tudo que está errado, enfim, contra o
mal. Precisam salvar o país desse estado
de pouca-vergonha em que se encontra, precisam acabar com esses partidos que
estão roubando nosso patrimônio, precisam prender todos os políticos, fechar o
congresso e, quem sabe...derrubar a presidente.
Tudo em nome da pátria.
3.
O processo de dessantificação das esquerdas, sua demonização e
as lembranças de 64
Há uma certa tensão no ar, principalmente no meio das esquerdas. O movimento que começou pedindo a redução das
tarifas de transporte público, criado e gerido por um movimento nascido no
Fórum Social Mundial de 2005, recheado de integrantes de diversos partidos da
esquerda brasileira, foi, de uma hora pra outra, tomado por uma turba raivosa.
É importante lembrar que, desde a redemocratização, TODAS as grandes manifestações sociais
foram lideradas e conduzidas por partidos da esquerda. São a esquerda e seus diversos movimentos
sociais e partidos que historicamente lutam e lutaram pela igualdade das mulheres, pelos direitos LGBT,
pelas minorias étnicas, por reajustes salariais, pelo direito de greve, pelas políticas de inclusão
social e, acreditem, pela moralização na política. A hostilização ao PT só existe porque as
denúncias de corrupção envolvendo membros do partido eram inéditas, e as elites
eram extremamente incomodadas com a percepção popular de que seus
representantes políticos eram vistos como parte de um grupo que só buscava
atuar em causa própria. O PT, entre os
grandes partidos brasileiros, ainda é o que registra, por uma larga vantagem, o
menor índice de corruptos. Tá aqui.
Não importa:
sob a alegação safada de que todo partido
rouba igual, relativizou-se o fato de que o quanto se rouba e quantos
dentro do partido roubam varia muito entre as diversas afiliações.
Aqui vem uma digressão que julgo ser importante para compreender
o atual momento: a eleição de Lula em 2002.
Pela primeira vez chegava ao poder um homem de origem humilde,
representando um partido que era praticamente uma utopia. Seu governo pode ser dividido em duas
colunas: a dos grandes feitos e a das traições àqueles que bancaram sua
candidatura: a militância petista.
Na coluna dos grandes feitos vêm, principalmente, as políticas
sociais, que possibilitaram a inclusão de milhões de pessoas na economia do
país, o que acabou levando o país a um processo de crescimento econômico e
geração de empregos movidos pelo aumento no consumo – claro, mais dinheiro nas
mãos dos pobres, mais dinheiro no comércio.
Por outro lado, na coluna das traições, temos duas coisas graves: o
abandono completo de bandeiras históricas, como a reforma política e, mais
grave, o esquema ilegal que ficou conhecido por “mensalão”, seja o que quer que
tenha sido, já que o julgamento condenou sem demonstrar o esquema denunciado
(compra de votos de parlamentares da própria base majoritária). As denúncias de 2005 obrigaram o PT a vender
a alma ao diabo, literalmente: através de um discurso elogioso ao ex-presidente
José Sarney, Lula atrai o PMDB (ou parte dele) para o governo. Aqui morre a reputação ilibada do Partido dos
Trabalhadores.
Não consigo imaginar um dia mais feliz para a direita brasileira
do que o dia em que eles olharam para o governo do presidente mais popular da
história do país, do partido que não roubava, e pensaram: “pegamos!” A
partir da entrada do PMDB no governo, nenhum militante de esquerda ficou livre
de escutar que eram exatamente iguais aos corruptos de direita. Qualquer reacionário enche a boca para falar
isso, já ouvi muitas vezes. O julgamento
de exceção que foi o mensalão acabou por condenar figuras históricas do
partido. Junto com estes, condenou toda
uma militância à posição de ladrões, corruptos, defensores daquilo que há de
pior em nosso país – eis a percepção da classe média reacionária brasileira.
A grande mídia brasileira é dominada por uns poucos veículos: organizações
Globo, editora Abril, grupo Folha e Estado de São Paulo. Todas pertencem à famílias abastadas
paulistanas, com exceção da Globo, que é do Rio. Todas têm em suas histórias as manchas de seu apoio ao regime militar e um corpo editorial claramente pendente pra
direita. A Abril, através da Veja, liderou
a mais dura campanha de difamação já sofrida por qualquer governo no Brasil. Os
fatos são grosseiramente distorcidos, manipulados, mentiras são contadas ou no
mínimo ventiladas. Do editorial à coluna
de fofocas, a Veja tem uma agenda antipetista muito clara. A Globo, lançada à condição de principal
canal de TV do país para servir como porta-voz da ditadura militar brasileira
faz o mesmo em sua cobertura televisiva tem ainda mais tradição no jogo: da vez
em que mostrou a passeata pelas diretas já como se fosse uma comemoração pelo
aniversário de São Paulo à edição do debate Lula x Collor que decidiu as
eleições de 1989. Estadão pelo menos é
mais honesto: costuma assumir em editorial suas posições, enquanto a Folha
posou, por muito tempo, de jornal de centro-esquerda.
Dois dias atrás, em um debate na USP, do qual participaram os
professores Marcos Nobre (Filosofia/Unicamp), Pablo Ortelado (Gestão de Políticas Públicas/USP-Leste) e
Renato Rovai (Cásper Líbero), avaliou-se que os atuais movimentos são dominados
por uma massa que não pode ser acusada, peremptoriamente, de ser de direita,
muito menos de fascista. Concordo. Há sim elementos e organizações de direita
nessas passeatas, e também fascistas...mas a grande maioria, a massa mesmo, é
formada por gente despolitizada, que lê muito pouco, que cresceu tendo como
principal fonte de informação esses veículos de comunicação: Globo, Veja,
Folha, Estadão. Quando você pega uma Veja na mão, esta parece ser uma revista séria: bem diagramada, vários textos,
fotos...enfim, informação! Pode-se dizer o mesmo do Jornal Nacional. É
incrível a quantidade de gente (e não falo só da parva massa) que não acha que
esses veículos não manipulem informação.
Tive muitas discussões com gente razoavelmente inteligente que se pauta
pela Veja...e pior: com gente que diz que não se pauta pela revista mas posta nas
redes qualquer merda que a revista publique contra o governo petista. Normalmente gente cuja leitura não passa
muito disso aí...tendem a relativizar o nível de leitura: “ah, você lê Gilberto
Freyre, Darcy Ribeiro, esses caras? Tudo
igual.”
Enfim, o fato é que essa massa alimentada à base de Veja e JN
pode não ter maldade alguma, mas é facilmente capturada pelo discurso da
direita. Na minha opinião, é o que
explica o sequestro da pauta do MPL pela direita. A coisa fica meio fascistóide no momento em
que alguns elementos se combinam:
A) A pauta se torna
genérica e moralista: “somos contra a
corrupção”:
Pessoal...alguém (não envolvido) é a favor da corrupção? Ser contra a corrupção é como ser contra o
mal. Quando marchamos sobre o Congresso
Nacional pedindo o fim da corrupção, queremos que façam exatamente o quê? Em primeiro lugar, a corrupção não
acabará. Nunca. É uma questão probabilística:
sabemos que uma porcentagem da população tende a querer tirar vantagem para si
através de meios escusos...nossa sociedade é particularmente tolerante e
praticante de pequenas safadezas, é difícil esperar que justamente no meio
político, onde mais se pode atuar no sentido de tirar vantagem em benefício
próprio esse pessoal não fosse aparecer.
Claro, somos contra a corrupção.
Agora, a forma de termos menos corrupção, é através do aprimoramento das
instituições, da transparência...e talvez, da educação. Enfim, daquelas coisas que todo mundo tá
cansado de saber, que a Dilma colocou nesse último pronunciamento e que o pessoal genial do
facebook acusou de “bla-blá-blá” – como
se não fosse possível fazer o mesmo com qualquer discurso político.
B) Supressão das
instituições de representação democrática:
Partidos políticos banidos do movimento, bandeiras arrancadas,
rasgadas e queimadas, gente pedindo a dissolução do Congresso...é compreensível
que a sociedade esteja de saco cheio de uma classe política tão corrupta quanto
a nossa, e que tenha a percepção de que “político é tudo igual” (não é
verdade). Agora, não me parece que
tenham inventado nada melhor que a democracia representativa...o que dá pra
discutir é se parlamentarismo é ou não melhor que o presidencialismo. Agora, democracia representativa se faz
assim: a gente vota, os mais votados assumem.
Se a gente não curtir o trabalho deles, não vota mais, uai! E se eles forem pegos aprontando, aí a gente
tira.
Pedir o impeachment da Dilma, como querem alguns, é absurdo. Primeiro, porque até onde
sabemos, ela não fez nada de errado.
Segundo, porque a maioria da população aprova o governo dela: 55%
segundo Ibope dessa semana, e a aprovação pessoal da presidente é de 71%.
O Datafolha publicou ontem uma
pesquisa realizada entre os manifestantes que estiveram na Paulista na
quinta-feira (dia em que expulsaram os partidos de esquerda da manifestação
que comemorava a conquista da reivindicação colocada por eles): desses que estavam lá, apenas
10% votariam na presidente se as eleições fossem hoje, o que só mostra a
distância desse pessoal para a média da população brasileira. 63% das pessoas tinham entre 21 e 35 anos –
justamente a geração despolitizada à qual me referia (a minha, aliás).
Mesmo que a maioria estivesse insatisfeita com a presidente, não
se tira um líder eleito assim, sem mais nem menos. Pra nossa sorte, não se trata de time de
futebol. Democracia é coisa séria, e
nela, todos têm o direito de protestar, de falar bobagem e de se expressar à vontade. Aliás, a presidente que temos
lutou diretamente pra que tivéssemos o direito de criticá-la abertamente.
FHC governou 8 anos com índices de popularidade muito abaixo dos
de Dilma, que supera até mesmo Lula em período similar.
C) Símbolos nacionais
(bandeiras e hinos) ostentados à exaustão:
Cria-se com isso um clima de que quem é a favor do Brasil deve
se juntar a nós, afinal, somos contra o mal, lembra? Junta-se isso ao discurso
da moralidade e tem-se um monte de moralistas de verde-amarelo exigindo a
prisão dos ladrões de vermelho.
D) Clima de terror nas
ruas:
Renato Rovai disse que há relatos de que no Rio até o tráfico
colocou agentes infiltrados para aumentar o clima de caos urbano, isso viria
como retaliação ao Estado do Rio pelas UPPs; em São Paulo, a polícia permitiu
saques, em várias cidades há enfrentamento e o clima está cada vez mais
tenso. Se isso continuar por muito
tempo, é possível que a população, assustada, peça mais polícia nas ruas, força nacional..."é necessário reestabelecer a ordem".
E) Eleição de um “salvador
da pátria”: Joaquim Barbosa.
Tá, não acho que role...mas o que tem de gente no face
publicando que "é só derrubar os quatro que estão na frente dele" não é
brinquedo. É uma pena que as pessoas só
tenham passado a prestar atenção no Barbosa depois do mensalão. Se tem um homem que não tem equilíbrio
suficiente pra ser ministro do STF, este homem é Barbosa.
Não vejo uma ameaça iminente de golpe no país, mas os elementos
necessários pra um certamente existem: imprensa, insatisfação generalizada, discurso
moralista, sentimento nacionalista e uma figura messiânica (ou, minimamente, um
perfil que se encaixaria). Não sei onde isso vai dar, acho que ninguém
sabe. Em São Paulo, a situação parece
ter dado uma acalmada...ontem houve protestos “só” em 20 cidades. Agora, se os
protestos continuarem por muito tempo, um cenário possível me parece ser o
seguinte: a esquerda tentará se recolocar nas ruas. Para tanto, seria necessário contar com suas
bases, com o povo das periferias, a tal da “Classe C”. Possivelmente a figura de Lula será utilizada
para levar os mais pobres a defender o governo, o que pode por fim às
tentativas de derrubar Dilma, ao menos nas ruas, mas certamente aumentará o acirramento
dos debates...não vai ser nada bonito.
Pra encerrar, só mais duas ideias rápidas. A primeira é a respeito da revogação do aumento de vinte centavos: é interessante (e real) pensar nessa conquista como algo muito maior que o mísero vintém. Esses vinte centavos por viagem que ficam no bolso do povo, equivalem, até 2016, a R$8,6 bilhões. Quase um quarto do preço da Copa, só em São Paulo. Isso tem um significado simbólico maior: o resultado das manifestações resultou na participação popular na decisão orçamentária do município. A população e o conselho da cidade optaram por investir esse dinheiro (que a princípio sairá do orçamento mesmo) na redução da tarifa.
Por fim, um trechinho do editorial d´O
Globo, de 2 de abril, celebrando o golpe militar de 64. A versão integral está
aqui.
“Vive a
Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas,
independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre
problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a
ordem.
Poderemos,
desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os
nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão
geridos com má-fé, demagogia e insensatez.
Este não
foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da
vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras
presidenciais.
A esses
líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por
isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não
pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer
reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos
princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País.”
"verde-amarelo, sem foice nem martelo"
Parece familiar?