quarta-feira, 17 de julho de 2013

It's Evolution, babe (2)


Para os poucos que tiverem a paciência de acompanhar a discussão detalhada no post anterior, este post aqui se dedica a resumir, destacar e, em alguns casos, desenvolver pontos que julgo merecedores de atenção.

Falando da minha participação em particular: peço desculpas se minhas palavras ficaram meio exasperadas demais em alguns momentos (tenham em mente que, sem negritos ou itálicos, a única maneira de mostrar ênfase no facebook é com a caixa-alta... mas eu não estava gritando não, ok?). Sei que posso ter perdido o tom e que faltei com a clareza e articulação em alguns pontos da discussão, mas acredito sinceramente que, ainda assim, os pontos principais de minha argumentação foram em geral claros e bem sólidos.

Dito isso, destaco a seguinte lista de problemas que vejo no discurso do debatedor adversário ("A.F.B.") que gostaria de destacar.

1. Primeiro, infornações e definições básicas erradas. Entre outros, os exemplos que me foram mais incômodos foram: as definições equivocadas do que é “teoria” e do que é “lei” e do que é a idéia de “seleção natural”; dizer que não há indícios suficientes para se afirmar que nosso planeta tenha bilhões de anos; e achar que o carbono 14 é usado para a datação da Terra.

(Aliás: o melhor mesmo foi, depois dessas últimas, ouvir a bravata de mandar perguntar a algum geólogo o que ele acharia da abiogênese... sério? Sério mesmo? Me pergunto com quais geólogos ele andou conversando -- e, na verdade, se já conversou com um geólogo alguma vez na vida.)

Em retrospecto, certas faltas eram tão gritantes que hoje fico até pensando se A.F.B. realmente desconhecia todos esses dados ou estava nos tentando a agir afobadamente -- ou seja, que ao ouvir tanta besteira, iríamos querer "desautorizá-lo" intelectualmente de maneira grosseira (o que é infelizmente uma atitude comum, como veremos num outro post desta série), o que lhe daria um ponto a explorar no debate. Acho que eu e Marcelo acabamos por desautorizá-lo mesmo -- mas fica realmente difícil, em especial no calor do momento, dizer a alguém de maneira gentil e ponderada que grande parte das declarações básicas de sua argumentação estão abismalmente erradas. (especialmente se o declarante em questão não é lá muito gentil e ponderado). Mas acho que conseguimos nos controlar um pouco.

2. Segundo, algumas misturas de alhos com bugalhos na argumentação. P.ex: querer vincular a defesa da evolução (assunto em discussão) a uma fé cega na abiogênese
Ora, acreditar que a vida “não surgiu sozinha” (ou seja, que há alguma classe de vontade ou "design" envolvido, num sentido muito amplo do termo) não é por si contrário ao princípio de evolução em si e seu imenso poder explicativo sobre o surgimento e distribuição da variedade biológica. O que vai contra ela é achar que todas as espécies vieram “prontas” e que não houve nem há possibilidade de surgimento de uma espécie nova a partir de outras no decorrer de centenas de milhares de gerações (o que o Intelligent Design – ou, ao menos, a versão explicada por A.F.B. -- pregaria).

[Um detalhe: tem um momento em que acuso o argumento para existência divina apresentado por A.F.B. de "tautologia auto-referente", mas o termo mais preciso mesmo é a falácia petitio principi (petição de princípio ou "clamando pela questão"). Ver a definição e a diferença aqui. para ótimas e didáticas listas de falácias, ver aqui e aqui.]


3. Terceiro, há o apelo à autoridade através de uso indevido de dados. Em primeiro lugar, dando uma referência genérica que não é verdadeira: o Departamento de Biologia de Oxford como "anti-darwinista", por exemplo. Alegar isso é tentar "contrabandear" indevidamente o status científico de uma universidade renomada para seus próprios argumentos.
(Claro, se estou errado aqui basta que se apontem quais os tais cientistas do "departamento de biologia" que duvidam da evolução ou que são "anti-darwinistas". Ou pode ser que eu tenha entendido tudo errado e a "Oxford" em questão fosse esta aqui.).
Mas o ponto mais importante aqui foi o fato de A.F.B. se valer de maneira errônea e descontextualizada dos estudos de geneticistas -- que, segundo ele, mostrariam que estatisticamente demoraria “216 milhões” de anos para que "2 mutações coordenadas” ocorressem em humanos.

Aí o leitor pergunta: mas peraí: isso não é um problema? Não é demora longa demais? Esses números não impossibilitam que a evolução tenha ocorrido? O fato deles mesmos apoiarem a evolução não invalida isso!
Bem, esse é o motivo deste ser o ponto mais importante e merecer ser repisado aqui. E é aí que entra o uso malandro dos números. Essa leitura parcial e errônea do que foi proposto pela dupla de geneticistas já tinha sido feita pelo próprio Michael Behe, o criacionista a criticado pelo artigo em questão. Behe havia calculado ele mesmo que a demora probabilística para ocorrerem "mutações coordenadas" seria da escala de bilhões de anos; refutado pelo cálculo dos geneticistas, ele acusou compreensivelmente que o número mostrados por eles ainda assim seria longos demais para  que ocorresse a evolução por mutação.
Bem, segue aqui o trecho final da resposta dos próprios autores (grifos meus):
“Behe notes that for one prespecified pair of mutations in one gene in humans with the first one neutral, we obtain a “prohibitively long waiting time” of 216 million years. However, there are at least 20,000 genes in the human genome and for each gene tens if not hundreds of pairs of mutations that can occur in each one. Our results show that the waiting time for one pair of mutations is well approximated by an exponential distribution. If there are k nonoverlapping possibilities for double mutations, then by an elementary result in probability, the waiting time for the first occurrence is the minimum of k independent exponentials and hence has an exponential distribution with a mean that is divided by k. From this we see that, in the case in which the first mutant is neutral or mildy deleterious, double mutations can easily have caused a large number of changes in the human genome since our divergence from chimpanzees. Of course, if the first mutant already confers an advantage, then such changes are easier.”
Recomendo a leitura do texto completo.
Coloco essa citação aqui para deixar claro que a conclusão peremptória de A.F.B. é uma leitura equivocada e tendenciosa das conclusões dos dados: coisa que se percebe já ao se ler o artigo em si, mas que esse parágrafo da resposta a Behe explica de maneira mais clara. Não sei se o erro é da leitura do próprio debatedor ou se é a reprodução de um argumento já usado por outros (meu palpite); mas o fato é que se trata de uma interpretação que, paradoxalmente, tenta ao mesmo tempo se aproveitar da "autoridade" que os cientistas conferem aos dados e ignorar o fato de que esses mesmos cientistas refutam esse uso particular dos dados.


4. Quarto, "o corvo chama o urubu de preto". Quantidade de pessoas que a apoiar uma determinada posição não serve nunca como "prova" de quão certa ela está. E, no entanto, a ciência funciona por consenso entre pares! Não é paradoxal? Talvez seja, mas considerando que os seres humanos são falíveis, não há alternativa melhor. O fato da imensa e absoluta maioria de cientistas (ou seja, pessoas que, em diferentes graus de competência e habilidade, são dedicados ao conhecimento via método científico) apoiarem enfaticamente alguma concepção ou teoria não é prova de nada; mas é sim um indício fortíssimo de que há motivos de sobra para que determinada concepção seja respeitada e levada em conta.

Nesse sentido, ainda acho impressionante como A.F.B. consegue começar decretando uma derrocada auto-evidente da teoria da evolução -- sugerindo que a quase totalidade dos biólogos do mundo sejam tolos e/ou malandros e/ou ideologicamente cegos (comparando a abiogênese a uma espécie de ortodoxia-talebã científica) -- e terminar acusando a mim e ao Marcelo de sermos arrogantes.
Mas vejam o que está em jogo aqui:  em sua fala final, A.F.B tenta  ignorar todos os argumentos apresentados contra ele (que, compreensivelmente, exigiriam horas e horas de leitura; mas pelos quais, bem, ele pediu) simplesmente imputando a nós a falácia da autoridade. O que é curioso, no mínimo: quando lhe interessava se apresentar como "informado" e "atualizado", não havia problema algum em apoiar-se na autoridade alheia,  mesmo que erroneamente (os geneticistas, o "Depto de Biologia"...); quando não podia mais, acusou a nós de fazê-lo, alegando que estava apenas “defendendo a dúvida”.
(Existe um nome feio para quando cobramos dos outros coisas que nós mesmos não fazemos.)

Começar falando que "evolução é matéria morta" e terminar falando que  "tem muita gente se engalfinhando até hoje por causa disso, a maior parte delas cientistas evolucionistas" é uma amostra perfeita dos objetivos reais de A.F.B: fingir a existência de uma controvérsia que ou inexiste ou, no mínimo, se dá em termos muito diferentes daqueles com os quais ele quer pintar (e Daniel Arbix fez o melhor comentário a respeito disso). Nenhuma novidade aqui, como já foi dito: praticamente todos os argumentos apresentados por A.F.B. são os velhos argumentos-padrão do criacionismo, como se pode ver neste nesta sintética resposta a eles.
Mas entendo a atração de A.F.B pelo Intelligent Design: intelectualmente falando, ambos parecem dedicar-se fundamentalmente a fabricar controvérsias -- em boa parte, talvez, como compensação pela contribuição explicativa que não conseguem ter sobre o mundo.
O que, diga-se a verdade, tem seu papel: eu mesmo provavelmente não teria pesquisado tanto e reforçado minhas próprias convicções sem essa "provocação"!  Mas, de minha parte de cético, acho bom desconfiar de "dúvidas" que precisem ser produzidas à base de falácias.


Bem, paro por aqui os comentários.
Agora pode-se perguntar: nossa, pra que esse trabalho todo? Pra que dedicar tanto tempo a escrever e falar tudo isso?
Porque sou um educador e trabalho com conhecimento; por que, ainda que não lide diretamente com as áreas envolvidas, elas me são caras e conheço desde sempre pessoas que labutam seriamente e continuamente nelas; e porque pessoas como A.F.B. estão por aí, arregimentam seguidores encima de falácias e da retórica sedutora de que eles é que estão pensando fora da caixa e expondo suas opiniões corajosamente. Mas falarei mais sobre isso em outra ocasião.

Dá muito, mas muito trabalho mesmo revelar falácias e lidar com quem apela para a desinformação e a mistificação para se promover como "livre-pensador"; mas é vivamente necessário.
Pelo bem do próprio livre-pensamento.

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