Sempre que era questionado sobre o conservadorismo paulistano, Fernando Haddad respondia, com precisão, que São Paulo é muito grande. Convive, simultaneamente, com um lado conservador que é numeroso, mas não necessariamente radicalmente conservador, e um lado liberal, cosmopolita, que é o que há de mais avançado na sociedade brasileira. E arrematava: "São Paulo é como uma valsa: dois pra direita, um pra esquerda", em alusão ao fato de que nas duas últimas décadas, alternamos uma gestão progressista a cada duas conservadoras: Erundina, Maluf/Pitta, Marta, Serra/Kassab, Haddad, Doria/?.
O estado de São Paulo, por outro lado, talvez seja o mais resistente bunker conservador do país, característica que data do Império, a partir do domínio das oligarquias cafeeiras. Não é justo acusar o PSDB de ser historicamente responsável pelo conservadorismo paulista, até porque a guinada conservadora do partido só ocorre a partir de 2010, quando José Serra, ao perseguir o voto evangélico, introduz a questão do aborto como tema central daquela campanha. Até então, nenhuma eleição presidencial do último período democrático havia dividido a população em polos tão claramente vinculados aos seus posicionamentos socioculturais. A incisão que dividia esses grupos só se alargou desde então.
São Paulo é, em muitos aspectos, a capital nacional de fato: a sede de fato do poder político e econômico brasileiro na nova república. A cidade, claro, exerce uma força gravitacional considerável em função dos tamanhos de sua população e economia. A polarização entre PSDB e PT, porém, arrastou para a cidade o núcleo do poder. A constatação é fácil: observem, no dia-a-dia dos candidatos, onde eles estão. Todos os dias, pelo um dos maiores está em São Paulo. Neste ponto, uma rápida digressão: eu sei que Lula é pernambucano. Mas foi um retirante. É, como milhões de outros paulistanos (ou metropaulistanos), parte dessa gente que construiu a cidade e é, até hoje, desrespeitada pelos barões do café.
Se alguém em 2014 soubesse que a armação política que começou a ser desenhada, no dia seguinte ao segundo turno daquela eleição, culminaria na derrubada da Dilma e na prisão do Lula, poderia imaginar que 2018 seria o ano da primavera tucana. Não está sendo.
É justo que se argumente que o "nós contra eles" tenha agravado a divisão entre esquerda e direita a partir da conscientização de que, há sim, classes sociais neste país - só enfatizo o óbvio porque conheço gente que "não acredita nesse negócio de classe social". Porém, aquela cisão social explorada pelo Serra em 2010 provocou uma divisão muito mais profunda e que me parece incurável: a polarização entre liberais e conservadores (no âmbito dos costumes).
"Incurável" parece um termo drástico e definitivo, mas estou considerando um ciclo histórico. A "minha sociedade", no seu tempo histórico, morrerá COM ISSO (não necessariamente DISSO). Com a captura do eleitorado evangélico pela direita fisiológica, a bancada conservadora ganhou espaço na oposição liderada pelo PSDB: boi, bala e bíblia (BBB). Essa bancada é, fundamentalmente, o tal centrão, embora não somente. Participou de parte do governo do PT por conveniência mútua, mas migrou assim que percebeu que BBB + PSDB + PMDB teriam a maioria para o golpe parlamentar e ofereciam mais espaço. Considerando a crise da igreja católica com a consequente expansão dos evangélicos e sua bancada, mais uma porção de militares que engrossarão a bancada da bala, é plausível que tenhamos, se não a expansão da bancada BBB, ao menos a expansão do binômio bala e bíblia.
O PSDB NÃO É um partido tosco. Não de origem. A legenda conta, ainda hoje, com um número de intelectuais bastante interessantes. Nunca teve, porém, apelo popular. Mesmo no auge de sua popularidade, FHC jamais se relacionou, de fato, com o povo brasileiro. Lula e o PT, ao contrário: o partido é ímpar no sistema político brasileiro porque surge de um processo político que reúne movimentos sociais com base popular REAL: sindicatos, setores progressistas da igreja católica e academia (professores, movimento estudantil e funcionários). Lula, por sua vez não tem dificuldade alguma para se relacionar com a população porque É do povo. E só não reconhece isso quem não convive com o povo brasileiro senão através relações servis.
A comunicação do tucanato com o povo se dá de outra forma: através da mídia. De cima pra baixo. Isso tem, também, abrangência significativa. Só que, essa mensagem política tem alcance raso. Não se aprofunda porque não faz parte da vida das pessoas. O Jornal Nacional pode até pautar a discussão na sociedade, mas o conteúdo, a compreensão, a interpretação se processam na vida social. Quando a GloboNews "aprofunda", já está falando para outro recorte social.
Tasso Jereissati confessou, recentemente, uma série de erros graves cometidos pelo partido - na minha opinião, um tiro no peito de Alckmin, crime doloso. O primeiro, questionar o resultado das urnas (a legitimidade da eleição de Dilma). O segundo, a sabotagem do governo (pautas-bombas). O terceiro, a participação no governo Temer. O quarto, a complacência com Aécio Neves. Todos esses, atentados à democracia. Quero ir mais longe. Em 2005 o PSDB patrocinou a eleição de um Zé Ninguém para a presidência da Câmara dos Deputados, rompendo um tratado não escrito de que o partido com a maior bancada elege o presidente. Isso garantia condição de governabilidade porque, mesmo com minoria (em números absolutos), o governo que elegesse, simultaneamente, o presidente da república e a maior representação parlamentar podia pautar o congresso. Não haveria possibilidade de pauta-bomba com essa salvaguarda. Eu dizia, à época, que aquela atitude era um escárnio à nação. O PSDB não tinha qualquer interesse em Severino Cavalcanti, um corrupto do baixo clero, senão o de introduzir um problema à governabilidade do país. Exatamente como o questionamento da eleição de Dilma, classificada por Aécio, ao telefone, como "só pra encher o saco deles".
De volta ao presente. Alckmin jamais foi o político inteligente e racional que alguns imaginam. Era apenas um cara dos baixos poleiros do tucanato, alçado ao topo pela morte de Mário Covas. Entendam: nenhum político com ambições reais se candidata a vice de nada, exceto, em alguns casos, à vice-presidência da república. Pensem na estatura política de um Márcio França hoje? Do Kassab vice do Serra? Ocorre que, pela desproporção de sua força, São Paulo agrega poder aos seus governadores e prefeitos. Alckmin fez uma campanha medíocre à presidência em 2006. Conseguiu terminar o segundo turno com menos votos do que obteve no primeiro. Isso contando com o mensalão em 2005. A sua bala de prata, coitado, era o "Aerolula". Alckmin é uma ilusão de ótica. Parece grande por ter governado São Paulo por quatro vezes, feito muito mais obtido pela rejeição histórica ao PT no estado que por mérito de gestão. Em 2016 patrocinou um atentado ao partido: rifou um tucano histórico para apadrinhar João Doria, que ganhou a prefeitura praticamente concorrendo só. Depois disso, tudo se passou ontem (mas as pessoas esquecem rápido): Doria abandona a prefeitura para concorrer ao governo de SP, mas não sem antes passar um ano viajando pelo país para tentar roubar a candidatura à presidência de seu próprio padrinho político.
O resultado de tudo isso pode ser uma mudança séria no equilíbrio das forças políticas nacionais. O PSDB corre grande risco de perder o estado de São Paulo pela primeira vez desde a eleição de Covas e, ao mesmo tempo, ter votação de nanico no pleito nacional.
Mais da metade do eleitorado do PSDB nas últimas eleições presidenciais estão no colo de um deputado menor, ignorante e burro, homofóbico, racista, sexista e antidemocrático, armado até os dentes de uma sanha populista de direita que, lembremos, foi atiçada por Serra em 2010. Aquele alcance popular, o diálogo com as pessoas que o PSDB nunca teve? Ele tem. E os assuntos comuns entre ele e a população são os piores possíveis. Ele reforça, no tiozão machista, a ideia de que seu comportamento, porque "normal", é razoável. No racista, o sentimento de que tudo é troça. Na sociedade, a noção de que todas as suas vítimas, na verdade, se vitimizam. É tudo mimimi.
Lembram da valsa paulistana do Haddad? Talvez ela se encurte. Doria provavelmente perderá os dois turnos na cidade. Espero que perca o estado, apesar do Skaf. Em 2022 teremos mais Alckmin, porque o estado não aprende. Mas a cidade? Haddad está, surpreendentemente, empatado em primeiro lugar. Nas projeções de segundo turno, vence o milico na cidade.
São Paulo é mesmo muito grande.
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