domingo, 25 de maio de 2014

Comentários

Anotações de momento inspiradas pela atitude aparentemente contraditória dos jornais a respeito da Copa -- primeiro querendo martelar o governo federal, agora tentando "salvar" a copa da indignação desproporcional com os gastos com estádios e etc.

1.
Lembro que, quando li 1984 aos 18 anos, uma das coisas que mais me impressionaram foi o conceito de "duplipensar". Mas não pelo vislumbre da vida de uma sociedade totalitária fictícia, mas sim por notar o quanto o conceito se aplicava perfeitamente à relação que a população dos países democráticos "espetaculares" tem com as mídias.  (desenvolvi mais esse assunto neste post anterior)
Não é necessária a imposição autoritária de um estado para que grande parte das pessoas simplesmente ignorem o visível non-sequitur dos pronunciamentos públicos (sejam os dos políticos ou os das manchetes de jornal e dos colunistas); basta que as coisas estejam em evidência na imprensa e elas "viram verdade" -- graças à simples ausência de disposição de grande parte das pessoas em acompanhar criticamente o que ocorre. "Sentir-se informado" -- e mesmo sentir-se "justamente indignado" é mais prazeiroso do que estar e admitir-se estar com dúvidas.

Hoje penso que é para isso que muita gente compra jornal: em alguns assuntos específicos e mais práticos quer-se dados confiáveis; mas, na imensa maioria dos outros, quer-se simplesmente a SENSAÇÃO de estar informado. E lembrando de Bourdieu, deve levar em conta que essa sensação também é acompanhada de outra refrescante sensação: a de superioridade perante os outros "alienados" ou a "massa ignara" em geral -- especialmente no Brasil, onde para muitos basta ler jornal ou assinar a Veja para que se sinta acima do "populacho analfabeto".

Para pensar o duplipensar de hoje, Orwell precisa ser atualizado com um pouco de Debord: a ordem do mundo do espetáculo é a de que "o que aparece é bom". Se transferirmos para o jornalismo, poder-se-ia dizer: "o que aparece é verdadeiro".

2.
O domínio dessa ordem, contudo, cria seu próprio complemento paranóico do mundo de hoje, as teorias conspiratórias. Cuja forma de funcionamento é mais ou menos esta: "a informação que me distinguir da massa de 'desconhecedores alienados' deve ser verdadeira". E aí também tem-se a terra de ninguém de critérios flutuantes, obscuros, emocionais ou mesmo supersticiosos para se aceitar dados como verdadeiros ou não. Nesse nicho, locupletam-se todos comentaristas picaretas que escrevem coisas feitas sob medida para os ávidos por distinção, por se sentirem portadores de informação privilegiada com a qual podem (ou, ao menos, tem a sensação de poder) esfregar sua "superioridade" intelctomoral na cara de outros.
O problema é que, para chocar e se distinguir, certas criaturas nefastas apelam mesmo a sandices absurdas (estilo "a teoria da gravidade era parte de um plano de Newton para espalhar o ateísmo e a burrice sobre o mundo") e a um rol interminável de falácias lógicas para racionalizá-las.

3.
É bem claro que pensamento crítico não é arsenal de fábrica do ser humano; saindo da esfera da necessidade prática imediata, o ser humano sempre tenderá a preferir o conforto, mesmo que auto-enganoso. Nesse ponto, contudo, que muita gente não entende -- e aí Orwell e o "dia do ódio" de 1984 é genial -- é o quanto o ódio é confortável, o quanto ter alguém para culpar e contra quem se indignar é sempre muito mais sedutor, familiar e confortável do que realmente se esforçar entender o que se passa.

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