Ao
longo da vida passei por uma série de saias-justas em discussões, pela confusão
que muitos fazem entre a acusação de um argumento falacioso com argumentos ad-hominem. É verdade que, por vezes, estas coisas
coincidem: o argumento falacioso pode ser utilizado de má-fé, caso no qual
chamar o outro de mentiroso é simples constatação da realidade, mas em nome do
raciocínio iremos assumir que na maior parte dos casos, o uso de falácias
conhecidas é feito de forma incauta.
Carl
Sagan lista uma série dessas falácias em sua grande obra “O mundo Assombrado
pelos Demônios”. Duas das mais comuns
são a compreensão errônea da natureza estatística e a estatística dos números
pequenos. São descritas da seguinte
forma:
·
estatística dos números pequenos – falácia aparentada com a seleção
das observações (por exemplo: ‘Dizem que uma dentre cada cinco pessoas é
chinesa. Como é possível? Conheço centenas de pessoas, e nenhuma delas é
chinesa. Atenciosamente’). Ou: Tirei três setes seguidos. Hoje à noite não
tenho como perder).
·
compreensão errônea da natureza
estatística
(por exemplo: O presidente Dwight Eisenhower expressando espanto e apreensão ao
descobrir que metade dos norte-americanos tem inteligência abaixo da média).
Estes
dois recursos retóricos se relacionam com uma terceira forma, igualmente conhecida:
a evidência
anedótica – é o relato de caso. Trata-se de utilizar a experiência pessoal
como evidência capaz de explicar a realidade como um todo. “Todo
mundo no meu facebook odeia a Dilma, portanto, a população deve odiá-la e essas
pesquisas de opinião são todas mentirosas”.
As
redes sociais, na forma como existem hoje, são um fenômeno ainda relativamente
recente. Na época do Orkut, as
discussões ocorriam dentro de fóruns fechados: para acessar os debates era
preciso entrar em uma comunidade, entrar em algum dos tópicos e então ler uma
sequência de argumentos. O resultado é
que cada comunidade tinha suas tendências e o debate corria de forma mais ou
menos esperada, mas não havia qualquer expectativa de que aqueles grupos de
pessoas representassem uma amostra representativa da sociedade.
A
arquitetura do facebook promove um tipo de interação completamente diferente:
as postagens são abertas, não necessariamente vinculadas a um argumento
específico. Acontece que as timelines
individuais do facebook, ou seja, as opiniões que aparecem no seu monitor quando
você entra no site, não é uma amostragem representativa da população brasileira
– e em geral, são só reproduções do que
é colocado pela grande imprensa, como podemos ver aqui. Esse conjunto de material mostra apenas a
realidade média do grupo social de cada usuário. Dessa forma, se no seu grupo de amigos há
muitas pessoas identificadas com posicionamento “x”, é provável que seu
facebook reflita, majoritariamente, esta posição, o que pode passar a falsa
sensação de que o conjunto da sociedade
pensa desta forma.
Meu
ambiente de trabalho é a academia. Para ser mais específico, o Departamento de
Geografia da Universidade de São Paulo.
Trata-se, tradicionalmente, de um reduto esquerdista, de forma que há um
número expressivo de opiniões de esquerda veiculadas na minha timeline. Ao contrário, se eu fosse um empresário do
setor agropecuário, provavelmente a orientação política geral do meu facebook
seria outra.
Ainda
assim, tendo passado boa parte da minha vida em uma cidade rica e agrícola do
interior paranaense, estudado em colégio particular e cursado engenharia civil
e direito há, no meu grupo de amigos, uma parcela expressiva de pessoas que não
só não são de esquerda, mas que ultimamente aderiram à radicalização do
discurso contra os governos petistas.
Sei (e tenho verificado) que, para essas pessoas, as minhas publicações
são um ponto fora da curva. E sei também
que o debate político promovido por essa neo-direita incidental é muito
superficial. Na maioria das vezes,
observo apenas um sentimento de raiva e um aglomerado de piadas (talvez o
cinismo, e não o patriotismo seja o último refúgio dos canalhas). Os que se preocupam em conduzir uma discussão
racional, raramente verificam seus fatos antes de postar, de forma que a imensa
maioria das críticas são facilmente refutáveis, o que pode reforçar o
sentimento, para essas pessoas, de que “esses
caras tem desculpa pra tudo”.
Dois
exemplos recentes:
·
a celeuma do reajuste do IPTU em São
Paulo: o reajuste proposto era menor que o último aprovado por Kassab, e
desoneraria boa parte da população de São Paulo, onerando aqueles que vivem em
regiões da cidade com boa estrutura de transportes, coleta de lixo diária,
iluminação e serviços. A batalha ideológica
foi travada como se todos fossem sofre um reajuste de 20%.
·
o jantar de Dilma em Portugal:
posteriormente descobriu-se que Dilma (e sua comitiva) pagou por seus próprios
jantares, sem fazer uso dos cartões corporativos.
Se
é verdade que uma mentira contada muitas vezes passa a ser compreendida como
verdade, um conjunto de pequenos fatos podem se acumular e compor um quadro de
que os mal-feitos são rotina. Ainda que
se pudesse se refutar todas as alegações, as pessoas que estão no mindset condenatório, enxergarão apenas
um grande volume de acusações. O
contraditório perde sua importância e eficácia.
É
neste ambiente que passo a discutir o recente fenômeno da “cubofobia”: o medo de que o Brasil esteja se tornando um país
comunista ou vivendo os preparativos de um golpe. Poderíamos dizer, de forma mais divertida,
que “cubofobia”
é o medo irracional de um golpe comunista no Brasil que só gente quadrada nas
três dimensões espaciais sente.
Dizer
que Lula e Dilma apoiam governos autoritários, comunistas e genocidas não é
novidade. Em 2010 havia muita gente
expressando o medo de que o Brasil se tornasse uma Venezuela (mesmo sem saber
muito bem o que se passa na Venezuela). O
motivo era a falsa expectativa gerada por conta da discussão do PNDH-3, que
limitaria as liberdades de imprensa e expressão e nos obrigaria a doar o pé
direito de cada sapato prum camarada mais pobre. A cada foto de Lula ou Dilma com Chavéz,
Fidel, Raul ou Morales, um pequeno chilique.
Mas nada mais grave, isso passou e as pessoas nem se lembram do tal
PNDH-3.
Em
2013, porém, a coisa começou a ganhar uma nova escala: a implementação do
programa “mais médicos” transformou, automaticamente, uma massa de analistas políticos
de facebook em especialistas nas questões relacionadas ao país caribenho. De repente todos sabiam como é, de fato, a
realidade em Cuba, e tinham críticas severas a respeito de temas que iam do
sistema de saneamento básico de Havana à exploração das negras que enrolam
charutos nas coxas “a incidência de
câncer de coxa nas mulheres cubanas é 20% acima da média mundial”, diriam
alguns.
O
último episódio – e razão do texto – é “doação criminosa de recursos públicos”
que o governo brasileiro fez para construir um megaporto em Cuba, enquanto os
nossos portos sofrem com a falta de investimento e tem gente morrendo de sede
no nordeste. Junto com o episódio,
pipocaram – outra vez – fotos de Lula e Dilma com Fidel Castro e as velhas
reportagens indicando que Fidel é um dos homens mais ricos do mundo.
Então,
compartilhei na minha timeline o
seguinte quadro:
As
reações, algumas públicas, outras em chat privado vieram mais ou menos no mesmo
sentido: o BNDES empresta, mas o faz sem qualquer perspectiva de receber o
dinheiro de volta. Alguém lembrou da
nossa complacência com o investimento do banco público na Bolívia (não foi dito
exatamente qual, mas suponho que seja o da construção do gasoduto
Brasil-Bolívia). Mas poderíamos citar
outras coisas, como por exemplo a postura do governo de não dificultar a
nacionalização das refinarias da Petrobrás no país. São casos diferentes, mas a postura frente a
eles pode ser parecida.
O
BNDES é um banco público com finalidade específica: promover o desenvolvimento
econômico e social do Brasil através de investimentos diretos – sob a forma de
financiamentos. Não está escrito (e não
faria sentido que estivesse), que o desenvolvimento não possa ser alcançado
através de investimentos que ocorram fora de nossas fronteiras. O BNDES funciona como qualquer banco, apenas
com taxas de juros compatíveis com a realidade econômica – ao contrário do que
ocorre com os bancos privados, relativamente livres para operar e cobrar as
taxas que bem entenderem, como gostam os liberais. O BNDES não vai atrás de governos ou empresas
oferecendo dinheiro. Recebe projetos,
analisa garantias e capacidade de pagamento e aprova ou não os
financiamentos. Em relação à questão do
porto de Mariel, gostaria de analisar a questão em três frentes: primeiro, sob
o ponto de vista da motivação do investimento; segundo, sob o ponto de vista
das prioridades de investimento do BNDES, por fim, sob a questão da política
externa brasileira.
Em
relação ao primeiro aspecto, sugiro a leitura dessa
reportagem da BBC. Pra quem não
sabe, a BBC é uma empresa pública britânica de rádio e TV. Obviamente um braço petista na mídia internacional.
Com
a reforma do canal do Panamá, que passará a receber navios de maior porte, os
chamados “pós-panamax”, a construção do porto passa a ter interesse estratégico
para o país – o custo de exportações de grandes volumes para a Ásia seria bastante
reduzido. Cuba não tem capacidade de
investimento e exportações, devido ao embargo econômico imposto pelos EUA. Com a expectativa do fim deste embargo, o
Brasil poderia se beneficiar da instalação de indústrias em Cuba, o que
facilitaria as exportações para a América do Norte, Central e eventualmente
para a Ásia, através do Canal do Panamá.
Cuba manteria as indústrias brasileiras em condição de zona franca
(livre de tributação ou com tributação irrisória) e forneceria mão de obra
qualificada barata. Agora, onde já vimos
isso antes? Ah, nas tais multinacionais,
pelas quais todos os estados brasileiros se estapeiam para receber. As questões impostas a esse tipo de
investimento, aliás, tradicionalmente vêm da esquerda: geração de empregos no
exterior ao invés de local. Mas é
preciso lembrar que os países desenvolvidos abandonaram as indústrias pesadas
há muito tempo, e que há a expectativa de geração de empregos por aqui também,
na construção de navios e outros produtos.
O porto de Mariel foi construído pela Odebrecht, empresa brazuca, 80%
dos insumos foram comprados diretamente do Brasil – ou seja, geração de
empregos e dividendos por aqui.
Na reportagem da BBC o depoimento mais
interessante é o de Arthur Zanetti, diretor de relações internacionais da Fiesp
(outro conhecido posto avançado do comunismo brasileiro). Pra quem não quiser ler, aqui vai uma
entrevista de Zanetti para o Jornal da Record:
Zanetti deve ter ouvido muito dos amigos: "pô, aí tu fode a gente, meu!"
Ironias
à parte, existem duas coisas que a Fiesp não costuma fazer: apoiar governo
petista e passar chances de ganhar dinheiro por conta de disputas políticas.
Em
relação ao segundo aspecto, a questão das prioridades de investimento do BNDES:
o argumento mais recorrente é o de que o Brasil deveria priorizar os
investimentos internos, que é um absurdo investir 1 bilhão fora do país, temos
gente morrendo de fome, de sede...bem, fui procurar o montante investido pelo
BNDES em 2013...e foram R$514,583
bilhões. Para este fim específico,
achei interessante utilizar a veja como fonte.
Está
aqui. Tendo isso em vista, os R$957
milhões equivalem a 0,18% de tudo que o banco investiu ano passado...mas é
claro que esse dinheiro não foi todo liberado em 2013, o que diminui ainda mais
o impacto nas contas do ano. Falar alto
que R$1 bilhão é muita grana (é, mas há uma questão e escala), tem como única finalidade
induzir as pessoas em erro, ao acreditar que é esse bilhão que está
prejudicando os investimentos por aqui.
Trata-se da tal “compreensão
errônea da natureza estatística”, uma das falácias mencionadas lá no começo
do texto.
Ainda
em 2013, o BNDES liberou R$10
bilhões para a Sete Brasil, que vai construir sondas para a exploração do
pré-sal. Ainda no ano passado, o governo
liberou mais
R$50 bilhões para o setor produtivo, que deverá ficar com R$372 bilhões em
2014. Entãããããoooo.............não dá
pra dizer que é o bilhão do porto de Mariel o responsável pelos não-investimentos
em outros projetos no Brasil.
O
desenvolvimento de grandes projetos no Brasil é complexo. A nossa legislação é muito travada, e com o
desenvolvimento, ainda incipiente, de uma legislação ambiental (que ameaça
voltar pra trás), é difícil conseguir acesso às verbas, uma vez que o BNDES não
pode, por lei, liberar valores para projetos que não obtenham todas as licenças
necessárias.
Por
fim, a questão da política externa: em relação a receber de volta os valores
emprestados, o acordo que foi feito com Cuba vai no mesmo sentido da abertura
promovida pela China. Será criada uma zona de exceção no país, as empresas
brasileiras estarão livres de impostos (ou com taxação reduzida), as operações serão
feitas em dólar e não haverá restrições para remessa de capitais. Mas então, o que Cuba ganha com isso?
Um
puta porto, que eles poderão usar sem ter que bancar a construção.
Equivaleria,
mais ou menos, a um país querer construir uma base de lançamento de foguetes
onde fizemos Alcântara. É uma posição
estratégica da qual se pode tirar vantagem, dada a economia de combustível, caso
o governo hospedeiro conceda o direito do uso da terra. Em caso de maior necessidade, talvez tivéssemos
feito o negócio. A moeda de troca?
Ganharíamos alguma tecnologia e eventualmente um satélite lançado “de grátis”.
O
pagamento do empréstimo (ou a maior parte dele) é de responsabilidade da
Odebrecht, não do governo cubano. A
expectiva das indústrias é que os valores sejam pagos com os lucros do
porto. A questão é se podemos ou não
confiar no empresariado nacional, não no governo de Cuba. O BNDES tem confiado, já que, como vimos,
empresta uma caralhada de dinheiro para empresas brasileiras todos os anos...e,
como vimos, um calote de R$1 bilhão não parece ser algo que preocupe tanto o
BNDES...talvez valha o risco.
Ainda
assim, e a questão da Bolívia? Por que
Lula não apertou a Bolívia na questão das refinarias? Por que havia a expectativa de renegociar o
acordo de Itaipu com o Paraguai? Por que
fazemos alguns investimentos para outros países com condições de pagamento
questionáveis? Ora, por duas razões:
primeiro, porque perto destes países, o Brasil é um colosso econômico. Há pouco tempo atrás estávamos todos na mesma
situação precária, com endividamento absurdo e sem capacidade de contrair novas
dívidas ou investir. O desenvolvimento
regional é importante porque fortalece o comércio e a indústria, tanto a nossa
quanto a desses países. O efeito
esperado é parecido com o que ocorreu no Brasil com os programas de
redistribuição de renda. Pobres com
dinheiro gastam seus recursos porque precisam de coisas. Com isso, injetam mais recursos na
economia. É uma conta simples. Ainda assim, se for o caso de um vizinho ter
dificuldades para nos pagar, que atitude devemos tomar? Embargar economicamente? Romper acordos de livre comércio? Bloquear
importações? Deixar que o país devedor se afunde, levando para a miséria milhões
de pessoas? Tratam-se de dívidas
pequenas para o porte do Brasil, e sei que é questão de posicionamento pessoal,
mas não acho que essa via seja a mais produtiva ou mesmo a mais humana.
Cuba
sofre com as consequências de um embargo econômico que não faz o menor sentido
nos dias de hoje. O que estamos fazendo
lá não é caridade, é aproveitar uma oportunidade de investimento – não fosse
assim, acreditem, a Fiesp não estaria tão de tesãozinho com o negócio.
Agora
concluindo: o problema real não me parece ser o que vem sendo alegado pelo
facebook. O investimento é justificável
do ponto de vista econômico, não representa um ralo pelo qual parcela
significativa do dinheiro do BNDES esteja escoando para fora do país. Também não se trata de um investimento em monta
que prejudique qualquer coisa que possa ser feita por aqui. Se os governos locais não conseguem ter
acesso a esses recursos, as explicações são de ordem legal, política ou mesmo
por incompetência na fase de elaboração de projetos. A iniciativa privada não tem tido
dificuldades com isso.
Só
me resta pensar que a reação que assistimos agora é proveniente de uma hipersensibilidade
desenvolvida por algumas pessoas só porque se trata de Cuba. Quem reclama aqui são aqueles que piraram com
o “mais médicos”, é quem perde o seu tempo investigando a vida pessoal do Fidel
buscando qualquer coisa que justifique o investimento em Cuba como algo imoral. Nesse sentido, cabem alguns questionamentos:
é imoral negociar com a China? Trata-se
de outra ditadura comunista. Ou vale
tudo porque a escala de valores é outra?
Se for o caso, quanto dinheiro compra a honra do investimento
oficial? E com os EUA, que cometem a sua
cota de barbaridades mundo afora, inclusive grampeando o celular da nossa
presidente? Alguém pensa em deixar de
negociar com a maior economia do mundo?
E com o Japão, que mata tantos golfinhos, meu deus???
Em
política externa, é comum que se façam concessões desse tipo. FHC, o herói tucano, tinha bom relacionamento
com Fidel e Chávez, e não me lembro de qualquer birra por conta disso. Além disso, tinha suas relações
questionáveis...como quando condecorou Alberto
Fujimori com a Ordem do Cruzeiro do Sul, lembram? E Fujimori tinha uma
biografia, digamos, questionabilíssima.
Enfim, ninguém achava que havia um golpe militar em curso, ou uma
revolução comunista em andamento por conta destes episódios.
FHC claramente desconfortável na companhias de Chávez e Castro.
A
relação Brasil-Cuba é uma relação de política externa, envolve interesses
estratégicos econômicos. Ocorreu sob
FHC, sob Lula e continuará acontecendo, porque não há o que justifique um
embargo brasileiro à Cuba. E,
sinceramente, eu tenho dificuldades em acreditar que os “cubófobos” estejam preocupados, de fato, com as condições de
trabalho e as garantias individuais dos cubanos. O motivo, e vocês não precisam admitir em
público, é raivinha do PT e vontade de colar no governo federal a pecha de apoiador
de líderes autoritários. É o PNDH-3 da
vez.
*pra não perder os tópicos relacionados do facebook, já que a discussão tende a rolar por lá mesmo:
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