Eu já havia tocado no ponto antes aqui e sugerido a leitura deste texto aqui ..Mas já que esse papo ainda corre e um monte de gente fica gritando "censura, censura" por aí, retomo*.
Nessa polêmica toda dos "conteúdos racistas" presente em livros do Sítio do Pica-Pau Amarelo, alguns fatos têm que ser estabelecidos sobre Monteiro Lobato: ele É um ícone cultural; ele É um escritor importante da literatura infantil brasileira; ele É (era) racista; e -- o que menos se discute -- ele É uma "Trademark" do mercado editorial e de entretenimento (Global) brasileiro.
Eu mesmo li vários de seus livros, e gostava, e percebia, mesmo com 11 anos, que tinha um monte de opiniões bem "das antiga" lá, bem como umas "farpas" claramente racistas.
Mas vamos lá: na boa, até agora não vi ninguém falando de "censurar" os livros -- qualquer criança que quiser lê-los pode ir a uma biblioteca e pegá-lo. Posso estar desinformado, mas o que vi foi gente defendendo que certos livros de Lobato não façam mais parte dos livros adotados para leitura escolar.
A questão é que, se um livro for adotado por uma escola, significa que, numa determinada classe, as crianças podem ter que ser "obrigadas" a lê-lo (ou seja, vai valer nota, etc.). Se levarmos isso em conta, ocorre uma inversão: "luta" das ONGS em questão não é pela proibição de "Caçadas de Pedrinho", mas para que os alunos não tenham que ser OBRIGADOS a lê-lo. Tem uma enorme diferença aqui, que algumas pessoas convenientemente preferem não ver.
Porque isso é um problema? Convenhamos que é complicado você obrigar uma criança (que hoje já lê tão pouco) a ler justamente um livro com insultos e elementos racistas como o são alguns do Sítio do Pica-pau amarelo... especialmente se a criança em questão for NEGRA. É interessante: ainda não vi alguém, entre os que acham toda essa história "absurda", levantar esse prospecto -- da ofensa que uma criança negra possa sentir ao ler algum trecho, digamos, da boneca Emilia comparando Tia Anastácia a uma "macaca preta".
Minha impressão é que o tamanho do bafafá encima do caso se deve:
1. aos autoproclamados Paladinos da Liberdade de Expressão aproveitando oportunidade fácil para um palanque;
2. aos Paladinos do Patrimonialismo Cultural Brasileiro, sempre interditando que se critique figuras canonizadas e;
3. Pela moral conservadora geral de gente "mezzo" informada e incapaz de aceitar que coisas que lhe são familiares e tidas como "inofensivas" possam, sim, ter falhas morais mais nocivas do que se imaginava
4. Ao fato de, no fim, esse processo correr o risco de "difamar" uma das mais lucrativas franquias Globais de entretenimento infantil do Brasil.
Mas talvez eu mesmo esteja mal-informado, e esteja em curso um processo franco de demonização e censura do M. Lobato... Mas bem: quando alguém quiser queimar ou realmente proibir que crianças leiam seus livros, me avisem que vou lá na rua protestar.
* este post é uma versão de um outro feito no facebook no mesmo dia.
6 comentários:
Gabriel, eu acho que independente de obrigar ou não a criança a ler determinado livro, isso varia de ano letivo para ano letivo e de estado para estado.
Querendo ou não, Moteiro Lobato era preconceituoso, com o negro, com o caipira (lembra do Jeca Tatu?), mas não diminui que sua obra, em um quadro geral, seja literatura de verdade...
Agora, até acho que possa "valer nota" a leitura de livros do Monteiro Lobato, vai depender só do professor além de trabalhar a questão da literatura, fazer um debate profícuo sobre o preconceito... Meu pai teve carreira no ensino chamado "da rede" no Paraná... Iniciou no ensino fundamental alfabetizando, passou para o ensino médio e 2º grau posteriormente...
Mas ele debatia já na década de oitenta, onde se obrigava alunos a lerem Monteiro Lobato por nota, a questão da Emília ofender a Tia Anastácia... Claro que isso dependia da idade... Por exemplo, era costume dele fazer cartazes em cartolina para as crianças mais novas trabalhando com conceitos básicos de preconceito...
Acho que ler Monteiro Lobato, tanto por seu valor literário é importante, quanto para as escolas discutirem como as classes aristocráticas brasileiras concebiam e concebem o racismo e o preconceito... Acho que é uma oportunidade a mais para trabalhar estas questões delicadas na escola em um amplo debate e não fazer censura...
Legal seu comentário, Marcel.
É engraçado que eu mesmo nunca tive Monteiro Lobato na escola: tudo que li dele foi por conta própria, porque meu pai me deu a coleção completa dos livros do Sítio no natal de 1989...
Na verdade eu não sei se era obrigado ou não pelo plano de ensino... Sei que se dava em algumas escolas estaduais... Teve um ano que me cobraram ler Urupês... Mas O sítio mesmo nunca também...
Acrescentando: uma das coisas que mais ouvi os defensores de Lobato falarem foi "eu li quase tudo do sítio do Pica-Pau Amarelo e não virei racista". Outra coisa é a grande quantidade de gente que se recusa a aceitar que Lobato (figura tão admirável) fosse mesmo racista.
Hoje, na Folha:
HÉLIO SCHWARTSMAN
Analfabetismo histórico
SÃO PAULO - O movimento negro, bem como outros grupos que tentam reduzir os níveis de intolerância na sociedade, tem toda a minha simpatia. Isso dito, é ridículo o que estão tentando fazer com Monteiro Lobato. Se a iniciativa legal, que já chegou ao Supremo, prosperar, o autor poderá ter parte de sua obra banida das bibliotecas escolares.
Não há a menor dúvida de que Lobato se utiliza de expressões que hoje soam rematadamente racistas, como o termo "macaca de carvão", para referir-se à Tia Nastácia. A questão é que estamos falando de escritos dos anos 30, época em que quase todo mundo era racista. E, se há um pecado mortal na crítica literária e na análise histórica, é o de interpretar o passado com os olhos de hoje.
"Não sou nem nunca fui favorável a promover a igualdade social e política das raças branca e negra... há uma diferença física entre as raças que, acredito, sempre as impedirá de viver juntas como iguais em termos sociais e políticos. E eu, como qualquer outro homem, sou a favor de que os brancos mantenham a posição de superioridade."
Odioso, certo? Também acho. Mas, antes de condenar o autor da frase ao inferno da intolerância, convém registrar que ela foi proferida por Abraham Lincoln, o presidente dos EUA que travou uma guerra civil para libertar os negros da escravidão.
E Lincoln não é um caso isolado. Encontramos pérolas racistas em ditos de Gandhi e Che Guevara. Shakespeare traz passagens escancaradamente antissemitas, Eurípides era um misógino e Aristóteles defendia com empenho a escravidão. Vamos banir toda essa gente das bibliotecas escolares?
A verdade é que todos somos prisioneiros da mentalidade de nossa época. Há sempre um horizonte de possibilidades morais além do qual não conseguimos enxergar. Aplicar critérios contemporâneos para julgar o passado é uma manifestação de analfabetismo histórico.
... O texto do Schwartzman é Ok, afora ser a mesma coisa de sempre.
Outro detalhe é que é bom ele ter citado o Shakespeare: fico pensando de novo sobre se escolas judias adotam a leitura de "O Mercador de Veneza", que é bem antissemítico... (se bem que, como a história da perseguição faz parte da cultura judaica, podem até estudar profundamente mesmo. Curiosidade)
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