domingo, 1 de julho de 2012

Sobre a melancolia de Lars

SPOILERS!!...


Ano passado vi Melancolia, e adorei.
Difícil mesmo chamar de "sutil" e "delicado" um filme:
A) do Lars Von Trier;
B) em que o planeta Terra é destruído e todo mundo morre.


Mas é o que achei: delicado. E, a níver de Trier, otimista até. Não causa aquela indignação profunda de "Dogville", "Manderlay", "Dançando no escuro", nem o completo desconforto de "Os idiotas". Eu considerava Trier um sádico inteligente, mas depois desse filme passei a achar que ele verdadeiramente sensível.

Não vou fazer um resumo organizado do filme -- assista, se quiser saber os tintins da história -- mas apontar algumas coisas que me chamaram atenção, especialmente no quesito escala.




Antes de ver o filme, eu tinha lido uma sinopse que dizia que um outro planeta batia na terra e pau: todo mundo morria. Eu fui ao cinema com expectativa de ver um planetóide ou algo assim batendo na terra.
Aí, logo no comecinho, veio o detalhe que me impressionou: não é que algo simplesmente bate na Terra, a Terra é ENGOLIDA por um mundo imensamente maior que ela -- planeta que, por acaso, chama-se "Melancholia"...

Por estranho que pareça, pra mim isso fez muita diferença. Por causa desse detalhe foi que interpretei o filme como uma obra sobre a depressão -- ou melhor ainda, sobre a natureza universal da tristeza -- da parte de um autor que reconhecidamente sofre desse mal (Lars Von Trier). "Depressão" justamente fez mais sentido pra mim dessa maneira: não como algo que vem e "bate", mas como algo que "engole" tudo, toda a pessoa, tudo que ela conhece; o mundo torna-se inteiro envolvido por esse fundamental vazio.

O filme é dividido em duas metades e centrado em duas irmãs, as duas bem problemáticas à sua própria maneira. A primeira metade do filme mostra Justine, a irmã depressiva, imersa no mundo "normal" de Claire, a irmã obsessiva: cambaleante, oprimida, incapaz e, pior ainda, sem que ninguém consiga nem ao mesmo atingir ou compreender o que diabos a aflige. Sua incapacidade de ficar feliz em seu próprio casamento -- no momento em que todos se esforçaram para que fosse feliz e, portanto, exigiam que ela o fosse --é quase condenada como uma falha moral. Como se ela não se esforçasse o suficiente para ser normal, para ser feliz -- como se afundasse em autopiedade.
No fim dessa parte, Melancolia (o planeta) torna-se visível a olho nu no céu.

A segunda metade do filme, Melancolia se aproxima da Terra e confirma-se, enfim, que com ela colidirá. Não por acaso, o que se  mostra é Claire, a irmã "normal" sendo lentamente imersa no mundo da irmã depressiva. Imersa simbolica e literalmente, já que a "Melancolia" está vindo pra engolir o mundo inteiro. E aí mostra-se sua total inadequação à nova situação, seu desespero e a artificialidade de seu apego a uma "normalidade" (p.ex: querer morrer tomando vinho ao ar livre, num clima bucólico). Sua incapacidade, enfim -- mais evidenciada diante da serenidade de Justine -- de encarar o vazio fundamental inerente a uma existência sob o signo da morte. Já Justine não se choca, não se desespera, porque ela já vive nesse mundo.

Entendam, Trier poderia ter apenas retratado um meteoro gigante, um pedregulho qualquer que batesse na gente e crau! nóis já era. O fim do mundo já estaria colocado. Mas ele criou um planeta -- algo da mesma categoria da Terra, e belo e reluzente e complexo e muito maior que o nosso planeta (nós é que estamos mais pra "meteoro"?). Tal atenção estética não visa só retratar uma tragédia, mas construir uma alegoria: o vazio da existência está lá; ele nos antecede, e é maior do que nós, e não é por que finjamos que não existe que ele não está lá.

Pessoas mais "positivas" podem achar que é um exagero de autopiedade de um diretor depressivo (à semelhança da reação das pessoas à tristeza de Justine); but he's got a point, na minha opinião. Usando a velha metáfora do copo pela metade, pode-se dizer que a moral dominante de nossa sociedade atual é a de dizer que "um copo pela metade pode ser visto como meio cheio e meio vazio, dependendo de como se queira ver". Ou seja, você escolhe como ver. Pra quem vê as coisas desse jeito, Trier pareceria estar escolhendo ver o copo como meio vazio-- seria um pessimista. Mas o que ele afirma na minha opinião é um tanto mais inquietante: um copo "meio cheio" está sempre "meio vazio", é um copo meio vazio. O vazio está lá. Há as pessoas que vivem quase exclusivamente nele, é certo; mas não as menospreze, porque o vazio é real. Está lá.

Pulando direto pro fim, dá pra dizer que Melancolia é um filme com "final feliz": há uma pequenina redenção, e é da fantasia de uma criança -- ou melhor, a necessidade do adulto de proteger e confortar uma criança -- que vem uma mínima e precária redenção possível.

Em um certo aspecto, esse final soa quase uma alegoria religiosa. É também disso que, até certo ponto, toda religião trata: uma ficção reconciliadora para se articular a insignificância humana diante do universo, diante do vazio da existência regida pela morte. O interessante aqui é notar que, justamente naquela frágil "fantasia" -- na "cabana mágica" que menino, mãe e tia fazem -- eles de certo modo estão protegidos. Não da morte, não do fim, mas do desespero.

 

Eu disse final feliz? É, soa exagero; mas não dá pra falar de um final exatamente triste, ou trágico; é um final... melancólico.



Epílogo: ao ver o filme, fiquei achando que o amor adulto-criança seria algo sagrado para Lars von Trier, algo que, em sua sanha destruidora, ele mantesse intacto; assim parecera em "Dançando no Escuro" e "Dogville"... Mas aí assisti "O Anticristo" (que ele fez exatamente antes de Melancolia) e vi que não; NADA é "sagrado" para von Trier.

Mas ao que parece ele acredita na existência de amor, pelo menos; ainda que destinado à tragédia, ele existe. E, diante do fim do mundo, talvez já fosse todo otimismo necessário.